A primeira palavra que me ocorre na ressaca do concerto de ontem é noite é simples: sublime! De facto não erraria em dizer que esta foi (até ao momento) a performance ao vivo do ano! Uma noite amena em Sintra, com os amigos do costume (entre ausentes e novos presentes), e com três actuações do mais alto nível. Dificilmente se poderia pedir mais...
Desde logo se começou a adivinhar a noite mágica que se avizinhava na intimidade da sala - sem um palco propriamente dito, as bandas partilham o espaço com o público que, sentado no chão ou encostado na parede atrás, encheu por completo a Casa de Teatro. Desde logo a primeira nota positiva para quem aderiu em força a mais um evento de qualidade, provando que merecemos que bandas deste calibre nos visitem mais vezes.
Os Àrnica entraram em cena com uma estética pagã bem vincada, em que a diferente percussão e o recurso a diversos instrumentos de sopro artesanais são imagem de marca numa sonoridade que recupera a tradição ancestral do Folk arcaico. Sempre muito convictos, com uma entrada poderosa (assente também na árvore de chocalhos que orgulhosamente apresentaram), alternaram algumas composições menos impactantes com outras de arrepiar - quando gritam "
Esta és mi tierra!", é inevitável sentir um impulso de nos juntarmos a tão nobre brado pela tradição que nos pertence, preservando assim a nossa própria identidade. Não falamos a mesma língua nem temos a mesma história, mas partilhamos com estes catalães esta união umbilical à terra que nos pertence de direito.
Depois de uma pequena pausa para montar a parafernália necessária, inicia-se um concerto de uma intensidade rara. O pequeno Uwe Nolte e o gigante Andreas Arndt, muito bem acompanhados por uma secção rítmica coesa mas que não lhes remove qualquer protagonismo, conduzem com uma mestria genial uma actuação que percorre alguns dos melhores momentos de Orplid e Barditus. Mesmo para quem já viu os germânicos ao vivo, é impressionante a emotividade, expressividade e sentimento que Uwe coloca em cada nota que canta, em que o espaço nunca foi tão apropriado como agora - na Casa de Teatro Uwe sentir-se-á concerteza em casa, já que nos brinda com uma prestação que tem tanto de música como de caracterização.
Mas seria de todo injusto não destacar a única música em que Andreas nos brinda com a sua voz suave e, descarregando melancolia por todos os poros, nos guia ajudado pelos hábeis dedos que dedilham a guitarra numa viagem a um recanto negro dentro de cada um de nós, onde olhamos de frente para o abismo que reside no nosso interior. Na actuação mais longa da noite, merecidamente, percebe-se porque é que este é um dos projectos que devemos seguir com mais atenção, com uma discografia atrás de si que dispensa apresentações mas que, esperamos, tenha muitos mais capítulos à sua frente.
E, claro, tivemos Ian Read. Acompanhado dos músicos de Orplid e Barditus, demonstrou-nos (se preciso fosse) porque é uma das vozes mais respeitadas do todo o espectro musical, e do Folk em particular. Já antes, durante a tarde, tinha passado algumas horas a discursar sobre alguns dos seus assuntos preferidos, como a mitologia nórdica ou a origem das runas, numa conferência com uma adesão também ela muito interessante, e que faz despertar a vontade que mais eventos deste tipo sejam realizados no futuro.
No que diz respeito à música, foi uma actuação bastante breve, mas mesmo assim muito especial. Bem humorado e visivelmente agradado por estar em Portugal - uma terra que, segundo o próprio, adora - iniciou uma passagem por alguns dos seus momentos mais memoráveis.
Quando passados menos de meia dúzia de temas os membros da incarnação desta noite de Fire + Ice recolhem ao
backstage, percebemos que a actuação não iria ser muito maior. De qualquer forma, ainda houve palmas suficientes para obrigar Ian Read a regressar duas vezes, para interpretar a solo duas músicas tradicionais britânicas, num vislumbre de porque é que a sua chama brilha de forma tão intensa no panorama musical internacional.
Very well, old chap.
Para a memória ficará sem dúvida mais uma noite especial em Sintra. Atrevo-me a dizer que não haverá provavelmente outro lugar melhor para se apreciar momentos como os de ontem. Até à próxima!