EVENTO: Cabaret Seixal 2010, Festival
Spoken Word (
Aires Ferreira,
David Soares,
Gilberto de Lascariz,
Hyaena Reich,
Melusine de Mattos)
LOCAL: Antigos Refeitórios da Mundet, Seixal
DATA: 13 de Março de 2010, 23:00
Foi num aprazível local perto do rio que tomou lugar um dos mais interessantes eventos que tivemos o prazer de presenciar nos últimos tempos.
O Cabaret Seixal 2010 tomou partido das condições proporcionadas pela câmara municipal e organizou uma noite de performances
spoken word que não só se transformou num evento muito especial como lançou caminho a algo que certamente terá outros episódios no futuro.
Sempre acompanhados por Charles Sangnoir ao piano e de improviso, todos os artistas tiveram também uma projecção vídeo a acompanhar a sua prestação, no que foi um complemento muito positivo ao seu desempenho.
A noite começou com Aires Ferreira, e dificilmente poderia ter começado de melhor maneira. Aires é um verdadeiro manipulador da palavra, e um
entertainer por natureza, sendo um prazer fazer parte da audiência que ele manipula com mestria.
Com uma actuação baseada em excertos da sua obra, incluindo o recente "
Ruína", e também com um tributo a Charles Sangnoir (através de uma interpretação de "
O Bordel de Lucífer"), o que se destaca em Aires Ferreira é a interacção expontânea que é capaz de encetar com o público, e a total ausência de indiferença com que acabar por nos deixar. É impossível passar a sua actuação sem um sorriso, até uma eventual gargalhada, ou porque não um momento de asco - tudo o que cause uma reacção, e muitas houve durante a sua actuação. Brilhante.
Seguiu-se David Soares, um dos nomes mais conhecidos no alinhamento, principalmente através dos seus mais recentes romances.
David optou neste caso por apresentar um texto essencialmente versando sobre a cor negra, nas suas mais variadas ramificações, fazendo uso do dom da palavra que tão presente está na sua obra.
Numa toada mais estática, sempre sentado ao longo da leitura do seu texto, o que impressiona - para além da qualidade, claro - é a capacidade expressiva para ininterruptamente apresentar-nos um longo trabalho, sempre colocando emoção nas palavras e não deixando espaço para um momento único de aborrecimento. Algo verdadeiramente apenas ao alcance de uns poucos.
Quando Gilberto de Lascariz subiu ao palco, muitos não esperariam a actuação visceral que nos proporcionou.
A melhor palavra que encontro para o descrever é "senhor". Porque, para além do respeito que a sua obra nos merece, a forte imagem que a sua personagem deixa no palco é bem latente de uma forte impressão, de uma marca característica.
Versou sobre os sete sacramentos do Diabo, sem a ajuda de qualquer papel ou auxiliar de memória. A saber: urina, fezes, sangue, sémen, lágrimas, leite, vómito. Mas não é possível replicar por palavras o efeito que causou na audiência: desde nojo a ultraje, gritos de "cala-te" e pessoas que pura e simplesmente abandonaram a sala, tudo aconteceu. E isto é o máximo que podemos pedir numa actuação deste tipo, inerentemente provocadora: que deixe uma marca, que cause reacção. Gilberto conseguiu-o para além das expectativas, e assinou uma das melhores actuações da noite.
Já Hayena Reich optou por uma toada mais poética, que acabou por ser também refrescante no alinhamento da noite.
Com uma pujante entrada em cena, capaz de despertar qualquer incauto a quem a noite começasse a pesar, a toada que marcou foi sempre mais relaxada, talvez até mais introspectiva, e funcionou como um bâlsamo nas feridas recentemente abertas.
Declamando palavras atrás de palavras, introduzindo um pouco de Francês também na sua actuação, guiou-nos através dos seus pensamentos e performances, acompanhando as palavras com gestos e tornando a sua prestação dinâmica e motivo de constante interesse.
Coube a Melusine de Mattos encerrar a noite, com a prestação mais mexida e dinâmica, onde a interacção com a prestação musical de Charles Sangnoir esteve mais evidente.
Graciosa nos seus movimentos, bailando enquanto declamava odes poéticas que brincavam com o sentido das palavras, tomava folhas que rasgava quando deixavam de lhe serem úteis e colocava os seus detritos num caldeirão, qual bruxa contemporânea.
No final, com a última folha lida e interpretada, chegou-lhe o fogo de uma vela presente no palco e com ela acendeu o rastilho que consumiu todas as outras, entretando descartadas, num clímax da sua actuação que acabou por representar também um final apropriado para o evento.
Cinco artistas diferentes, com também diferentes interpretações e actuações, mas que se complementaram de forma perfeita para tornar a noite num evento especial. Resta-nos esperar pelo próximo, e que tenha tanta qualidade como este!